Solipsismo


Havia uma loucura que morava nela como alguém que mora dentro de outro. No começo era imperceptível, apenas um incômodo no peito, uma voz fraca tilintando sobre suas ideias. Mas ela alimentava a loucura com fantasias que quase vivia. Mas ela acalentava a loucura com longas incursões para dentro de si. E a loucura lhe ocupava cada dia mais, ia lhe devorando o ar, os laços, a realidade. E por fim, ela morava dentro da loucura como alguém que mora numa ilha.

Caricatura



A menina que escrevia está morta.
E sob o concreto da poesia
é                  
    sepultada,
    palavra
    por
    palavra.

Futurismo


Julho escoou depressa pelo ralo do tempo
Os ipês de setembro há muito floriram
Consulto no calendário onde estou, a data de hoje
Mas só há dias seguidos por outros dias, e mais dias
E todos são segundas-feiras
E todos, assépticos como palavras pronunciáveis e sentimentos meticulosamente contidos.

Ontem


Venha ver pela janela o ontem
ir embora veloz, com minha alegria
Corre, que ainda dá para ver de longe
o ontem e sua alegoria
Corre, porque o ontem é breve

Caleidoscópio


Esvazio a metáfora
Aqui dentro sempre em círculo sem nunca
Nunca  encontrar o sentido,  a saída
O que há de mim em mim mesma?
Repito, reflito
Recoloco no rosto o sorriso do espelho
E traço o passo rumo ao início
Mas não há recomeço no estreito do limbo,
Não há.   

Enumeráveis


Na coleção de clichês
que separei para você
estão:
palavras poucas
que pingam
gota a gota
da boca
gestos descompassados
que vão sendo embaralhados
pelo vendaval
um olhar medroso
se esquivando da paisagem
E sem criar nenhum dilema,
uma rima(simples) no fim do poema.


Inquietude

São estouros de manadas
as águas turvas que me invadem
vão pisoteando os contornos
diluindo em nada
a delicadeza dos caminhos que por mim passaram.

Literal

Era sobre
uma amiga que gostava de passarinhos
e queria trazer um papagaio da Bahia
até pagaria mil reais para ter a licença do Ibama
Ai o cavalo mancando
Ai o cara com cara de vilão de faroeste suburbano puxava o cavalo
Ai a moça drogada que só se lembrou que eu era filha, mas não chegou a se lembrar de quem,
atravessaram a história
e sendo assim, não teve jeito,
minha amiga que gostava de passarinhos
voou para longe.

Radiohead


Vem,
sem rosto ou nome
sem porquê, nem de onde
É um quase nada, um quase tudo
Parece louca
Quase padece louca e desesperadamente
com o gosto amargo a volver na boca
descer pela garganta
sujar o coração
provocar o óbvio
enegrecer a rima
parar os dias
deixar longe
o eu

Relicário


A poeira que os dias deixam para traz quando vão embora,
é o que guardo de ti.
Um sorriso quebrado que se apagou,
quando não mais te vi
é o que sobrou de mim.
Agora: eu, poeira, sorriso, você
vivemos exilados dentro da imensa noite branca
que não termina no começo do dia.

Retrato


A chuva caia tão fininha e manchava a tarde de cinza. Nem se ouvia o tamborilar de seus pingos no telhado.  A menina já cansada de ficar dentro da casa espiava pela janela. Às vezes, quando a chuva diminuía, parecia que entre uma nuvem e outra brotava uma frestinha de sol, mas ai o céu se movia todo e apagava a esperança. O gato dormia pesadamente sobre o sofá. A mãe ninava o irmãozinho no quarto quieto. Só o ponteiro do relógio quebrava o silêncio, minuto a minuto... Mas as horas não passavam. . .Sentia dó do abacateiro, que encharcado lá fora tremulava de frio. Contava lentamente as poças d’água que iam se formando no quintal. E o tempo não passava.  A pressa sempre fora um grave defeito da menina, agora acelerava o seu coraçãozinho e lhe fazia ter suspeitas terríveis: talvez aquela tarde nunca acabasse. Talvez a morosidade do tempo fosse um labirinto, uma armadilha para que não brincasse mais, e até para que não crescesse.
 
Epílogo
Sinto pena em dizer, que a pressa da menina a impediu de viver grandes aventuras, de navegar para além do horizonte e desbravar mares distantes. E ela foi só um miniconto teimoso de verbos parados.

Timidez



Quis te aprisionar com minhas escassas palavras 
e quase cometi plágio,
na ânsia de te fazer poesia
sobrou silêncio
é que você sendo prosa
                                 
                                 eu sou agrafa.

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Miragens



                       Prólogo
Li em seus olhos uma minúscula vírgula,
que foi logo disfarçada por um sorriso de culpa.                                            
Li em seus olhos um aceno breve,
que se eu fosse outra não teria lido.                                                                                    
Um aceno que diz que você vai embora mesmo se ficar.
 
 ***
Foi despertada por um incomum cheiro de esgoto e sonolenta caminhou até o banheiro, onde o cheiro fétido ainda mais forte assomava-se ao mofo que emanava, estranhamente, de paredes brancas cobertas por azulejo. Era quase como se estivesse em outro lugar, numa outra vida. Agora, não só o cheiro, mas as mãos trêmulas, as rugas que contornavam seus olhos no espelho e certo desequilíbrio anunciavam um pensamento que estava se desenhando em sua mente. E de repente, como se alguém soprasse em seus ouvidos, descobriu: Você não existe, é personagem, uma mera invenção. Confusa e nauseada, quis fugir, correr desesperadamente porta a fora, respirar, acordar desse sonho inócuo. Mas antes de qualquer passo, do menor movimento do pulmão, o desespero foi retirado de si, já não sentia nada a não ser a lembrança do sentimento. E um minuto depois sentia resignação e uma sólida certeza. Era mesmo uma invenção, tinha autor e não existia, mas essa descoberta não causava mais pavor, nem vontade de correr ou gritar. E uma súbita indagação encarrilhou-se ao primeiro pensamento: Porque descobrira? Tinha tido até então uma vida ordinária, um tanto vazia, mas caminhava insuspeita para algum desfecho, certamente. E agora a descoberta catastrófica desfazia as paredes do minúsculo apartamento, e transformava tudo em volta no nada. E fora ele que causara isso, e ela não conseguia entender porque a deixara descobrir. Sabia bem, pelos livros que lera que as personagens desconhecem a própria natureza fictícia, imaginam-se reais. E é o autor que não lhes desperta a consciência. Seria vingança? Sempre foi obediente às circunstâncias, ia para onde o vento soprasse, nunca tivera sentimentos indevidos de heroísmo, exceto pela bagunça nos seus tempos verbais, às vezes, ia para o ontem como se fosse um amanhã, poderia ter feito dela o que quisesse. Talvez fosse a passividade que o revoltava, a mediocridade que circulava nas veias.  E talvez fosse o seu silêncio de ser poesia quando ainda se achava gente. Ou o silêncio de ser poesia, alheia ao ar inóspito que ele respirava em seu quarto escuro... O silêncio dela de ser poesia enquanto ele, que a criara, só sabia ser solidão e fim.


 

Inspirado em relatos e observações reais


O outro, um planeta distante. Aos nossos olhos, por vezes, um ponto mínimo dentro do céu imenso.  Está longe da nossa compreensão, fala outra língua, traça órbitas inesperadas, vive de embasbacar.  Amedronta e fascina absurdamente. E quando por travessura se despe, já não me engana mais: o outro do avesso sou eu.


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