Miragens



                       Prólogo
Li em seus olhos uma minúscula vírgula,
que foi logo disfarçada por um sorriso de culpa.                                            
Li em seus olhos um aceno breve,
que se eu fosse outra não teria lido.                                                                                    
Um aceno que diz que você vai embora mesmo se ficar.
 
 ***
Foi despertada por um incomum cheiro de esgoto e sonolenta caminhou até o banheiro, onde o cheiro fétido ainda mais forte assomava-se ao mofo que emanava, estranhamente, de paredes brancas cobertas por azulejo. Era quase como se estivesse em outro lugar, numa outra vida. Agora, não só o cheiro, mas as mãos trêmulas, as rugas que contornavam seus olhos no espelho e certo desequilíbrio anunciavam um pensamento que estava se desenhando em sua mente. E de repente, como se alguém soprasse em seus ouvidos, descobriu: Você não existe, é personagem, uma mera invenção. Confusa e nauseada, quis fugir, correr desesperadamente porta a fora, respirar, acordar desse sonho inócuo. Mas antes de qualquer passo, do menor movimento do pulmão, o desespero foi retirado de si, já não sentia nada a não ser a lembrança do sentimento. E um minuto depois sentia resignação e uma sólida certeza. Era mesmo uma invenção, tinha autor e não existia, mas essa descoberta não causava mais pavor, nem vontade de correr ou gritar. E uma súbita indagação encarrilhou-se ao primeiro pensamento: Porque descobrira? Tinha tido até então uma vida ordinária, um tanto vazia, mas caminhava insuspeita para algum desfecho, certamente. E agora a descoberta catastrófica desfazia as paredes do minúsculo apartamento, e transformava tudo em volta no nada. E fora ele que causara isso, e ela não conseguia entender porque a deixara descobrir. Sabia bem, pelos livros que lera que as personagens desconhecem a própria natureza fictícia, imaginam-se reais. E é o autor que não lhes desperta a consciência. Seria vingança? Sempre foi obediente às circunstâncias, ia para onde o vento soprasse, nunca tivera sentimentos indevidos de heroísmo, exceto pela bagunça nos seus tempos verbais, às vezes, ia para o ontem como se fosse um amanhã, poderia ter feito dela o que quisesse. Talvez fosse a passividade que o revoltava, a mediocridade que circulava nas veias.  E talvez fosse o seu silêncio de ser poesia quando ainda se achava gente. Ou o silêncio de ser poesia, alheia ao ar inóspito que ele respirava em seu quarto escuro... O silêncio dela de ser poesia enquanto ele, que a criara, só sabia ser solidão e fim.